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sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Retalhos do dia

Cheiro de cimento, pó, areia e massa fresca. Escada suja, chão rústico, paredes inacabadas, blocos espalhados, desconforto pela falta de espaço na escada estreita. A reforma das muretas e do piso vai demorar. A escada está suja demais. Os pedreiros não limpam. Fica perigoso subir ou descer com crianças e bolsas. Reclamo ao síndico. Ele conversa ao longe com outro morador que sequer teve o trabalho de descer o “campo de batalha”. Tudo vai se resolver, vou pedir para eles varrerem quando saírem, promete o síndico. O cheiro do pó toma conta da casa.

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Trem lotado, corpo cansado, cabeça cheia (de preocupações e idéias), a barriga ronca, a fome aperta. Os olhos querem se fechar. O balanço do trem embala os passageiros como em um berço, mas a lotação não deixa o sono chegar. Empurrões daqui, criança chorando dali, perfume demais, desodorante que perdeu a validade. Acha-se de tudo. Ao lado, duas meninas falam sobre suas aventuras amorosas a quem quiser ouvir, programam o MP3 no celular – um chiado inaudível, funk e rap. Para competir, três rapazes conversam esganiçadamente, ligam o celular também, com o volume no máximo. Só me resta torcer para chegar logo a estação que vou descer, pegar o fone de ouvido e ligar meu celular para ouvir o som que gosto. Apesar do volume, sinto-me melhor do que estava antes, mais relaxado e fora da disputa de quem queria só chamar a atenção. Mesmo assim, vez ou outra, sinto uns empurrões e ouço alguns comentários irrelevantes.

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O cachorro late sem parar. Ele só fica valente quando está do lado de dentro do quintal. Quando pula o muro para a rua fica manso, todo encolhido na calçada. O canto dos pássaros, tanto perto quanto ao longe, traz um pouco de paz. Durante o dia todo, um som irritante na rua ao lado, onde funciona uma funilaria. Vez ou outra se escuta disparos dos alarmes. Automóveis cruzam a avenida que não fica tão distante. Mas o ruído fica quase ensurdecedor quando algum caminhão sobe a rua. A vista da janela é espetacular. O pôr-do-sol é um show à parte. Mesmo escondido entre prédios e casas cinzentas, ele transmite quietude e paz de espírito, auxiliado pela brisa morna que rompe o céu, bailando entre os obstáculos.

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Quase meio-dia. A fome, só para variar, é companheira desde as 11 horas. Ainda mais hoje que tomei café da manhã muito cedo. O cheiro da comida invade toda a casa e toma conta do escritório. Alguém grita “tô com fome”, outro suspira, um outro levanta, disfarça, ameaça descer as escadas em direção a cozinha, volta e senta. Eu tomo água para tentar despistar o estômago. A espera é árdua. O almoço só ficará pronto ao meio-dia e meia. Até lá, só resta o trabalho e a boca salivando, sem falar naquela famosa sensação de vazio.

POESIA

A poesia é um grito silencioso, às vezes irradiante como o
brilho das estrelas, às vezes perdida na escuridão da alma.
Vez ou outra estoura, rompe o horizonte e as barreiras,
assim, seu som se expande ao infinito.
Porém, não importa o quão alto se grite, ela é somente
compreendida pelos sensivelmente loucos ou pelos
eternamente enfeitiçados.
Feitiço que rasga a carne, calcifica-se no osso e
explode no espírito, tornando impossível a omissão dos
estilhaços deste ser possuído pela magia do sentimento.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Que estranho, que esquisito!

O relógio marca quinze para as seis da madrugada. Subitamente o telefone toca, ecoando pela casa adormecida o seu grito histérico. Levo um susto. Quem será? Por acaso não sabem que as pessoas precisam dormir? É, definitivamente acho que não. Aliás, em situações normais, pessoas “normais” devem dormir. Mas não foi o que me aconteceu durante toda a noite, onde a insônia cobrava minha atenção e me empurrava em abismos imaginários para afogar-me em pensamentos desconexos. O toque do telefone me tira do transe. Saio cambaleante e ainda com sono, tropeço na cadeira largada na cozinha durante a noite e agarro o telefone antes de cair a ligação. “Alô!” A voz metálica é cortante: “Serviço despertador da Telefônica informa: cinco horas e quarenta e cinco minutos. Bom dia!” Que raiva, esqueci que tinha programado o despertador no telefone. Parecendo o desenho do Pica-pau, saio me arrastando até o chuveiro, mas não sem conferir o estrago que noite mal dormida fez em meu rosto. Ponho a roupa e tomo, quase em um único gole, o café forte, na esperança que ele me desperte e sirva de antídoto do sono durante todo o dia.

Ligado no piloto automático, entro no carro e sigo para o trabalho. Trânsito lotado, buzina no ouvido, ronco dos escapamentos (os mais barulhentos e chatos são os das motos sem silenciador). É cedo ainda, mas o calor dentro do carro é insuportável. Ah, como seria bom agora um carro com ar condicionado! Na verdade, eu queria estar agora deitado numa rede em uma casa no sítio no alto da montanha. Putz, muito verde, água corrente e gelada, serenata de cigarras, cheiro de terra molhada que me remete à infância e plantas, muitas plantas. Ah, o farfalhar das folhas no entardecer é como um canto hipnótico da sereia, mas em vez de me arrastar às profundezas do oceano, leva-me ao embalo do sono, tal qual um gato aninhado na grama sob o sol. Para forçar a minha concentração, coloco o rádio do carro, mas por algum motivo não o ligo. É como se eu quisesse sintonizar apenas a estação dos meus pensamentos e “ouvir” os sucessos de outrora, como quando a família se reunia na sala em dias de falta de energia e brincava unida, inventando figuras de sombras projetadas na parede pela luz das velas.

Ouço uma buzina forte e um grito de “Acoooorda meu, olha o trânsito. Tá dormindo?” Não havia percebido que os carros se mexiam. Não seria melhor ligar o carro? Mas as lembranças são tantas que nem percebo desviar minha atenção para a mulher do carro ao lado. Engraçado, olho-a, mas não a vejo. Em vez de seu rosto, surgi-me a face de minha primeira e única namorada. Nunca tive muito sucesso mesmo como conquistador, mas o fato é que eu dei sorte mesmo. A namorada virou esposa. E é esse rosto que me acompanha, não só agora, mas o tempo todo. Lembro do tempo em que íamos aos shows de MPB e, duros como sempre, na volta, um sanduíche de mortadela parecia uma iguaria de outro mundo. Tempo em que a idade não pesava e a loucura juvenil nos permitia até dançar em plena rua, como se ouvíssemos nossa música favorita e alçada aos moldes de “nosso tema”. Nesse tempo, as noites não tinham fim e eram sempre enluaradas. Ela, a lua, sempre presente, bonita, como se fosse colocada ali para iluminar os nossos instantes de carinho, era a testemunha das nossas aventuras. Uma luz tênue, acetinada, esfumaçante, sendo ampliada pela neblina noturna.

Caramba! O filho da mãe está sem luz de freio. Quase bati na traseira do desgraçado. Quer saber de uma coisa, é melhor ligar o rádio, ouvir um rock e controlar a minha mente para não fugir em devaneios. O que eu queria mesmo era ir para casa dormir. Ai que sonolência. Vou precisar de outro café. Duplo, de preferência.

Por Manoel Gonçalves

(texto publicado no blog Coletânea Artesanal em 30-11-2007. As edições são quinzenais e vale a pena conferir)

Querença

Do sol o raiar do dia
Da lua a inspiração
O romantismo dos poetas
As carícias dos amantes

Das pessoas a amizade
Da natureza o frescor matinal
O toque morno da brisa
A força contida na terra

Dos olhos da amada o brilho
Das palavras a verdade
A frieza dos céticos
O calor dos estudantes

Da vida um sentido
Da morte um aprendizado
A pureza das crianças
A sabedoria dos idosos

Mas em tudo que quero
Que me serve de alimento
E se transforma ao doar
Desejo sempre amor como sentimento

Manoel Gonçalves


(poema publicado no blog Coletânea Artesanal em 30-11-2007. As edições são quinzenais e vale a pena conferir)

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

Sexta edição do Coletânea Artesanal

Olá a todos. Como comentei no post anterior, sexta saiu a 6ª edição do Coletânea Artesanal, blog com obras de diversos autores, editado pela Lunna Montez'zinny. Há dois textos meus nesta edição. Ficarei honrado com a sua visita e seus comentários. O blog é editado quinzenalmente e farei o possível para participar de todas as edições.

Abaixo segue um aperitivo, pois o restante está lá, na íntegra, além dos textos dos outros atores, que são muito inspiradores. Boa leitura!


Que estranho, que esquisito!
"O relógio marca quinze para as seis da madrugada. Subitamente o telefone toca, ecoando pela casa adormecida o seu grito histérico. Levo um susto. Quem será? Por acaso não sabem que as pessoas precisam dormir? É, definitivamente acho que não. Aliás, em situações normais, pessoas “normais” devem dormir. Mas não foi o que me aconteceu durante toda a noite, onde a insônia cobrava minha atenção e me empurrava em abismos imaginários para afogar-me em pensamentos desconexos. O toque do telefone me tira do transe. Saio cambaleante e ainda com sono, tropeço na cadeira largada na cozinha durante a noite e agarro o telefone antes de cair a ligação. “Alô!” A voz metálica é cortante..."

Querença
"Do sol o raiar do dia
Da lua a inspiração
O romantismo dos poetas
As carícias dos amantes..."

Grande abraço.

Manoel