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sábado, 19 de abril de 2008

A luz reveladora

O homem acordou e saiu tateando. Apesar da escuridão total, sabia exatamente onde ficava cada obstáculo. De repente sentiu algo estranho, algo que nunca havia sentido. Uma sensação de medo e curiosidade tomou-lhe por inteiro. Um pequeno feixe de luz cortou as trevas e iluminou parcialmente seu rosto e algumas coisas ao seu redor. Seus olhos eram muito sensíveis e aquela fresta aberta o incomodava, mas ao mesmo tempo atiçava a sua mente dormente por tantos anos de breu. Aos poucos a luz se tornava mais abrangente e o calor que ela produzia acariciava sua pele. Apesar da estranheza, ele gostou. Piscou os olhos muitas vezes até que os mesmos se acostumassem e ficassem de vez abertos. Olhou à sua volta. Aquelas coisas que ele sempre tocava, mas não sabia o que era. Aproximou-se da parede. Havia alguma coisa ali pendurada. Ele se aproximou mais. Deu um urro e se afastou. Tinha visto alguma coisa, alguém dentro da parede. Inquieto com a situação, tentou chamar a atenção do ser, balançando os braços, ao que o outro também o imitava. Mexia-se para um lado e para o outro. O prisioneiro do espelho o seguia. Foi chegando de mansinho e tentou dar a mão ao “amigo”. Mas havia algo que o impedia. Sempre batia numa parede lisa invisível, como um vidro. Aos poucos foi percebendo que a imagem tinha o seu jeito e começou a se tocar para ver o que acontecia. Teve uma sensação de poder (do conhecimento) ao descobrir que era uma imitação dele. Olhava-se minuciosamente. Viu que tinha algo peludo que lhe cobria o rosto e que era o motivo de tanta coceira desde muito tempo. Com um objeto cortante tirou boa parte daquela coisa. O ambiente se iluminava cada vez mais. Ele percebeu que a luz passava por debaixo de uma madeira que tinha a meia altura um ferro. Tomou coragem e foi mexendo levemente até que o ferro cedeu. A madeira se mexeu e revelou um clarão intenso. Quando seus olhos, após o choque e a dor, se acostumaram, ele os abriu vagarosamente. Daí o assombro foi ainda maior. A luz revelou um mundo imenso, cheio de cores, formas, texturas, cheiros, intenso de vida, o qual ele ignorava completamente. Viu que era apenas uma poeira perto de tudo aquilo e que ainda tinha muito, mas muito a descobrir e aprender.

Essa releitura de O Mito da Caverna, escrita pelo filósofo Platão, é tão somente para demonstrar o poder da alfabetização. Faço esse post (um pouco atrasado, pois o dia da blogagem coletiva foi ontem) para participar da campanha da Blogagem Coletiva contra o Analfabetismo, iniciativa da Georgia e da Meire e abraçada por muita gente boa da blogosfera. O aprendizado é assim: quanto mais se estuda, mais se descobre, mais se completa e mais se tem a noção de ainda faltar muita coisa a saber. Eu, de fato, não faço tanta coisa para combater o analfabetismo, além de procurar sempre incentivar as pessoas ao meu redor à prática da leitura, ler para as minhas filhas e levá-las às livrarias, dar livros de presente para os familiares e mais chegados.

Mas é engraçado e fascinante essa coisa toda, pois se não fosse o processo de alfabetização, você, caro leitor, não estaria lendo esse post, eu não teria esse blog e participaria de outros. E tudo ficaria na mais completa escuridão. Assim como as pessoas que não sabem ler, escrever ou interpretar o que lêem. Ao evoluírem para esse nível de conhecimento, as portas, janelas e tudo o mais no mundo se abrem para elas.

Aprender é como a vida. Separados, somos apenas letras de um imenso alfabeto, que podem ou não fazer a diferença na história contada todos os dias. Mas juntos, somos como as letras que se dão as mãos e formam sílabas, palavras, textos imensos, dramas e romances do livro da vida. E a história não tem fim. Cada dia se escreve um capítulo diferente, onde pessoas unidas e engajadas constroem uma rica teia de relacionamento e desenvolvimento, fortalecendo as personagens, sejam elas principais ou coadjuvantes.

E como a historinha citada no começo, ainda temos a aprender e ensinar também.

Abraços.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Força interior

A força do que sinto
Que dilacera os órgãos
Desejando achar o ponto de vazão
E expande em som
Irradia em luz
Não está no que se vê
Não fica visível a olho nu
É preciso um microscópio
Não o científico
Mas sim o imaginário
Nascido das percepções
Do sentimento puro
Amor, respeito e carinho
Essenciais para entender
A força do que me move
Que me faz enxergar além
Muito além dos olhos alheios
A que me permite vislumbrar
A profusão de cores
Das diferentes auras ao meu redor
Flores raras do meu jardim
Que me faz viajar em pensamentos
Transcender o corpo físico
Achar a força interior
E a colocar em palavras e ações

Versos vivos da poesia que sou

Manoel Gonçalves

Lábios

Ah, teus lábios
Que chamam
E dizem que amam

Teus lábios
Molhados
Pintados
Lascivos de amor
Passeiam em meu corpo
Exploram sem pudor

Arrepiam
Atiçam, enfeitiçam
Os poros retraem
Os pêlos eriçam

Lábios que sinto
Toque suave
Cochicho ao pé do ouvido
Relaxa e deixa escapar um gemido

Lábios em meu rosto
Incitam minha libido
Secam minha boca
Doce beijo que não vem
Será real essa boca?
Por que não me toca a minha?
O desejo é ardente
E a espera quase enlouquece
Não cega porque compensa
Com o calor enfim
Dos lábios quentes macios

Manoel Gonçalves

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Retalhos

Nem tudo que escrevo
É o retrato do que sou
Nem tudo que penso
Revela minha essência
Nem tudo que faço
Pode me elevar ou condenar
Nem tudo que digo
Sai exatamente como quero
Nem tudo que respiro
É ar ou muito menos saudável
Nem tudo que bebo
É insípido e inodoro
Nem sempre encontro comigo mesmo
Mas estou em tudo que faço
Em cada pensamento vago
Do riso amarelo ao amor declamado
Estou em cada uma dessas coisas
Que não têm tudo exato
Mas refletem a colcha de retalhos
Que representa uma pessoa
E os pedaços juntados numa jornada inteira

Manoel Gonçalves

sábado, 12 de abril de 2008

Rito de beleza

(texto publicado em 05/04 no blog Livro Aberto)

Joana desligou o chuveiro, se secou e vestiu o roupão de seda. Pegou o creme hidratante, o espelho oval que fazia par com a escova de cabo trabalhado, presentes de seu amado marido Valter (juntamente com o roupão, onde estava envolvido também um bilhete com os dizeres: “para que fique ainda mais encantador o seu ritual de beleza, o qual me deixa qual poeta a admirar a sua musa lua”). Ela sentou-se em sua cama, levantou a perna esquerda, permitindo que o roupão se entreabrisse e revelasse parte de suas curvas, e lentamente iniciou a sua massagem de hidratação.

Valter poderia muito bem se oferecer para fazer aquilo, como de fato fizera algumas vezes, mas o ritual todo o fascinava, era como assistir o nascer do sol na colina, não tinha nada a fazer a não ser admirar o acontecimento natural, a beleza do momento. Ela só olhava de canto de olho e sorria. Era como o brilho do sol a se espalhar na planície. Valter saboreava cada segundo. E assim se seguia até todo o corpo exalar o perfume adocicado do creme. Porém, o ápice era ver Joana pentear o cabelo. Era tão meiga em suas ações que fazia daquele instante algo sublime. Nem uma sereia de verdade seria capaz de enfeitiçar um homem daquele jeito. Ela parecia irradiar, sua aura poderia iluminar o quarto. Era um esplendor. E ele, como marujo em transe, se encaminhava para o seu mar, onde se agarrava ao corpo dela e já não via mais nada, era presa fácil envolta em seus braços, inebriada em seu perfume, sua pele, seu rosto e seus cabelos. Adormecia nos braços de Joana ou agarrado a ela, como se não quisesse que aquele instante tivesse fim.

Não era um ritual de toda noite e nem sempre ele estava lá para assistir, pois às vezes chegava mais tarde do trabalho. Nesses dias, ela se aprontava toda e ficava a esperar, mas ainda deixava para escovar o cabelo um pouco antes de dormir, só para que ele visse. Não era nada extraordinário, mas era algo que o deixava contente e para ela já bastava.

Porém, um dia, ele não chegou. Ela esperou em vão. Embora soubesse do acontecido, do acidente que o levara, Joana ficou por um tempo fazendo aquele mesmo ritual, deixando perto da cabeceira da cama o espelho e a escova, esperando que ele aparecesse de uma hora para outra e pudesse espiá-la novamente.

Os anos passados fizeram de Joana uma mulher mais conformada com o que se sucedera. A escova foi guardada na gaveta, enrolada junto com o espelho num lenço de Valter. Os cabelos branquearam e ficaram mais ralos. A pele já não tinha mais o mesmo viço. As marcas no rosto não escondiam, porém, a alegria da vovó Joana em abraçar e apertar o netinho Valtinho ao fazer suas vontades.Mas nesta noite a lua brilha imponente no céu. Não há nuvens. Ela parece estar com o dobro do tamanho. Joana toma seu banho, se seca e veste o roupão. Vai para o quarto, abre a gaveta e pega a velha escova, cuidadosamente preservada. Já não tem mais a mesma elasticidade, mas ainda assim faz o seu rito de beleza. Penteia os cabelos prateados e deita-se. Coloca a escova e o espelho ao seu lado e fica esperando. Ela sabe que esta noite ele vem. Valter voltará para admirar sua musa e novamente se emaranhar em seus braços. E depois colocá-la em seus braços, esperando que ela finalmente adormeça com um delicado sorriso na face.
Manoel Gonçalves

quarta-feira, 2 de abril de 2008

Arte de Viver

Da arte não faço parte
Talvez nem faça a tal arte
É ela que, singela,
Esperta e sorrateira,
Se esconde em minha mente
Muito ágil e faceira
Usando os seus encantos
Desliza feito serpente
E me guia como fantoche
Revela, para minha sorte,
Quase como um deboche
Aquilo que quer de mim
Assim sendo, ela é o Norte
Não posso ser dela uma parte
Ela é que é meu estandarte
Meu jeito diferente de ser
De agir, de pensar e de ver

É a arte que vive em mim

Manoel Gonçalves