Constantemente recebemos inúmeras informações. Todas interferem em nossa maneira de ver o mundo. E quando a janela abre uma fresta, a luz irradia, transborda e com ela, vão as palavras, os sentimentos, a visão do mundo, emoções, alegrias, tristezas, os risos e os bichos que estão presentes em cada um.
A noite estava fria. Era quase meia-noite. A casa agora estava em silêncio quase absoluto, não fosse pelo ronco que vinha da sala e por um borbulhar de água fervendo no fogão. Os ponteiros do relógio de parede na cozinha, daqueles simples de promoção de loja de móveis, pareciam pesados. Lentos e pesados. O tempo naquele momento passava com extremo vagar. Cômodos mal-iluminados e gélidos. Talvez representando o clima lúgubre daquela noite, talvez para encobrir os suspiros trêmulos, ofegantes, que se esgueiravam pelas narinas constipadas daquele rosto choroso e penitente. Na penumbra do banheiro, somente uma fresta de luz oriunda do refletor no poste se derramava pela janela, a face aterrorizada se contemplava diante do espelho, buscando uma razão, quer fosse para a cena a que a sua detentora foi submetida, quer fosse para a própria existência. E assim, quem sabe, objetivando o próprio renascimento, ressurgir daquela escuridão para uma vida mais digna ou então, sem forças, sucumbir aos apelos de seus temores. Nem sempre foi assim. A boca, hoje triste, sem brilho nem batom, já se abriu em largos sorrisos e em exuberante carmim. O rosto, marcado de rugas de descontentamento, já foi macio e bem tratado, até mesmo pela mão que o desprezou tempos depois. Os cabelos despenteados já foram cuidadosamente escovados e moldados em penteados, para que ficassem de prontidão, aguardando o momento em que se libertariam e seriam amassados contra o travesseiro. O corpo que tremia no escuro, pela raiva e pelo frio, já se sentiu tão quente ao ser tocado que parecia um vulcão em erupção, pronto a cobrir de lava todo o ambiente e fazer arder a chama da paixão até que os dois corpos ficassem unidos, solidificados no êxtase do amor. Mas tudo tinha ficado num passado distante. Sentimentos soterrados por camadas de sedimentos dos percalços vividos durante anos, formando a espessa camada que camufla a verdadeira mulher por debaixo daquela casca: pessoa agradável e bem quista, juvenil e sonhadora, amante carinhosa e mãe amorosa; uma imagem reservada aos momentos solitários, quando Gilda fazia um esforço para mantê-la viva na memória. Gilda e Adamastor se conheceram numa quermesse. Ele, 8 anos mais velho e já trabalhando numa grande empresa, não conseguiu disfarçar ao vê-la na barraca de bolos, agitando o corpo e chamando os presentes para degustar as guloseimas da barraca. Aquela noite sempre serviu para boas gargalhadas com a recordação de quantos pedaços de bolo Adamastor teve que comer até convencê-la a falar seu nome e dar o número do telefone. Gilda, que estava terminando o colegial, trabalhava como atendente de uma lanchonete no centro da cidade. Ela não queria se meter com homem mais velho, mas acabou dizendo sim três anos depois ao casamento. Se perguntarem, nem ela pode dizer como tudo aconteceu tão relativamente rápido. As primeiras brigas começaram quando ela entrou na faculdade. Adamastor morria de ciúmes dos amigos dela e vivia bisbilhotando suas coisas à procura de algum recadinho, um nome, uma prova incontestável. Assim mesmo, Gilda conseguiu driblar a rabugice do marido e terminar o curso. Claro que o filho ajudou muito a mudar a cabeça dele. Ela achava que uma criança, mesmo sem ter terminado a faculdade, iria ajudar a melhorar o entendimento entre eles e trazer os tempos de carinho de volta. Isso aconteceu de fato, pelo menos nos dois anos e meio seguintes. Mas a idéia de que sua esposa queria trabalhar, sair, conhecer gente diferente, trilhar uma carreira, colocava Adamastor em paranóia constante. As brigas recomeçaram. Ele começou a chegar mais tarde e conversar menos com ela. Gilda tinha de dar conta do seu emprego, não ficar até tarde por causa do filho e chegar disposta em casa, para a segunda jornada. Ele chegava resmungando, fazendo gracinhas e insinuando se alguém tinha dado em cima dela, discutia, jantava, ficava assistindo alguma coisa e ia pra cama sempre depois dela. Aí a coisa mudava de figura. Jurava amor eterno, pedia desculpas, dizia que ia mudar, envolvia-a, os dois choramingavam, faziam sexo e dormiam. Mas a história sempre se repetia. A situação piorou de vez quando ela foi promovida. O que ele achava que seria passageiro, agora começava a ficar sério demais. Para seu desespero, a empresa desativou sua unidade de trabalho. Ele estava tão seguro de sua situação que não procurou atualização na área e tornou-se dispensável. O desemprego bateu-lhe às fuças. As discussões tornaram-se constantes com a crise financeira. Foram os piores meses na vida de Gilda, pois não raramente ele chegava bêbado em casa, gritava, derrubava algumas coisas e depois desabava na cama. Ela morria de medo, mas tinha convicção de que ele não a agrediria. Além do mais, tinha esperança que tudo mudaria assim que ele se firmasse em outra empresa. Era só uma fase e, apesar de tudo, ainda o amava e ele era um pai presente, às vezes ríspido demais, mas não desleixado, quando estava bom. O problema é que o ócio torna a pessoa sem opções e a saída nem sempre é mais edificadora. Alguns quando caem, levantam-se rapidamente, outros preferem culpar qualquer um pela sua queda e se apóiam numa vareta para se reerguer, não percebendo a inevitável queda para o novo abismo. Adamastor se refugiou na bebida. Quando estava mal, chorava, mudava de humor rapidamente e se dizia um inútil sustentado pela mulher. Morria de vergonha e raiva por isso. E Gilda também já estava sem paciência para aguentar aquela autopiedade exacerbada. Na sexta-feira daquela semana, pensando em se divertir um pouco, aceitou o convite das amigas do serviço para um happy hour. Mandou o filho para a casa da mãe dela, pois não confiava que seu marido fosse chegar cedo em casa. A noite foi muito boa e ela pode desabafar um pouco, espairecer. Aceitou a carona da Mirtes, que estava com seu namorado, para chegar o quanto antes em casa, a tempo ainda de buscar seu filho. Mas quando o carro parou diante de sua casa, Adamastor só olhou pela janela e a viu sair do carro de outro homem, dar um lindo sorriso e jogar um beijo. Aquilo despertou sua fúria. Ficou sentado no sofá, esperando ela entrar. Gilda nem teve tempo de acender a luz. Foi puxada com força e jogada no chão. Ele a chamou de tudo em quanto, acusou-a de traição. Ela tentava se defender e explicar que não era aquilo, que ele estava enganado. Mas ele nem ouvia. Contrariando tudo que ela imaginava, agarrou-a com força, disse que ia dar o que ela merecia. Rasgou sua roupa e a forçou contra o piso. Ela chorava de raiva e dor, tentou sair, mas ele a pressionou. Entrava e saía de seu corpo com voracidade animal. Após finalizar sua possessão brutal, jogou-a contra a parede e a mandou para a cozinha preparar sua janta. Jogou-se no sofá, ligou a TV e agarrou sua companheira destilada. Sem forças, machucada por dentro e por fora, com medo, dando graças por ele não ter usado de violência e a espancado, mas ferida em sua honra violada como uma besta irracional, Gilda acabou indo para a cozinha, sem saber ao certo o que faria. Colocou a água no fogo e ficou picotando a cebola. O ódio percorria seu corpo, principalmente quando lembrava do acontecido. Adamastor ficou sentado como se nada tivesse feito. Pegou no sono. Ela pensou várias vezes em fazer uma besteira, contra ele ou contra ela mesma, pois se sentia suja. Foi ao banheiro para se lavar, livrar-se daquela sujeira física e moral, purificar o corpo e a alma, arrancar as manchas e a lembrança, mas não queria se olhar, não queria constatar o horror. A água borbulhava na cozinha, o rosto queimava no banheiro, o sangue subia e só a raiva pulsava em suas veias. Aquele homem galanteador da quermesse perdeu-se na escuridão de si mesmo. Naquela maldita noite perdia-se também para ela. Acabou o amor, findou-se o respeito, morreram as esperanças. Só ficou o ódio. Queria denunciá-lo, mas sentia medo, vergonha, não queria se expor e sofrer outra violação. Pensava no pior e pensava em seu filho. Voltou para a cozinha e ao passar pela sala, a imagem do mostro adormecido fez tudo voltar à sua mente. Dirigiu-se ao fogão, apagou o fogo, fitou o vazio por alguns segundos. Pegou a panela, foi até a sala e parou diante daquela massa tosca. Ficou enojada. Suas mãos tremiam muito. Em sua mente as cenas de todos os anos passavam depressa. Eram reconfortadas pela imagem de seu filho. Ainda bem que estava com a avó. Está em boas mãos e não preciso me preocupar agora, pensou ela. Tinha de tomar uma decisão. A que mudaria sua vida dali pra frente. Segurou firme a panela, afastou-se um pouco, respiração ofegante, e jogou a água escaldante... A planta, que ficava num lindo vaso ao lado do sofá, ao receber aquele banho de água quente, murchou na hora, assim como murchara a flor da paixão vivida. Dela restou apenas a beleza do fruto, um menino sorridente que precisava ser cuidado para não apodrecer também. Gilda, trinta e poucos anos, um filho, agora descasada, ainda que não oficialmente, sentiu um misto de angústia e alívio. Adamastor, por tudo o que fez, merecia seu ódio e muito mais, mas ela não merecia apodrecer na cadeia, longe de seu filho, deixando que outra pessoa o criasse. Sua sede de justiça inflava seu ser, mas não podia abdicar de sua vida e de seus sonhos, não devia se igualar aos seres irracionais. Olhou tudo a sua volta, juntou o que achava mais importante e indispensável. Os lençóis desfeitos, frios e desbotados, assemelhavam-se ao seu orgulho e seu amor. A sala revirada e a besta-fera jogada sobre o sofá incitavam-na à fuga. Apenas com a imagem de seu filho na cabeça, bateu a porta e saiu. Respirou fundo, jogou o cabelo sobre o rosto, escondeu os olhos sob os óculos escuros, tentou sair de cabeça erguida, apesar dos direitos em ser humana violados, e foi para a casa de sua mãe, sabendo que tinha muito a fazer, mas sem o peso que vinha arrastando. Algum tempo depois, Adamastor, após implorar inúmeras vezes pelo perdão de Gilda e sem conseguir sequer falar com ela, assinava os papéis do processo que ela estava movendo contra ele. Incentivada por sua mãe, procurou a delegacia da mulher e pode enfim ter sua vingança iniciada e a justiça cumprindo seu devido papel. Manoel Gonçalves
Um poema que fiz faz tempo, para uma peça que encenei num festival local de teatro amador. Uma época gostosa essa do teatro... e o poema abaixo é uma brincadeira, uma narração com versos como se fosse um cantador. Uma história de posses de terra, muito antes da balbúrdia das invasões desmedidas e das incessantes discussões políticas sobre aproveitamento de terra, mas nem por isso sem a presença da violência muito conhecida nessas regiões. A peça em si foi feita com base em um artigo publicado numa dessas revistas semanais, que relatava a morte de um padre após o conflito numa região invadida, onde era comum a disputa e até mesmo morte de ambos os lados.
Cantiga de Cantador
Nas caatinga do sertão Nas cidadi de pedregúio Seja lá no meio dos mato Ou socado nos entuio
Ou inté neste galpão Bem no meio da fazenda Nas terra que foi invadida Cercado de gado e de mato Do gado que come moita Tamém do home que apanha E chicote que açoita
Cheio do cheiro da relva Lavano roupa no rio O home se embrenha na mata E mostra todo o seu brio Trabaia de sor-a-sor No cabo da enxada E só pára de noitinha Pra acorda de madrugada
E é no meio do sertão De terra seca, castigado do solzão Que eu vô contano os causo Do povo que sofre o descaso
Canto do rico que bebe ouro E do pobre que pede pão Das famía que rasga o couro Trabaiano nas plantação Invadino terra sem uso Brigano e morreno Por um pedaço de chão
É nesses canto que o home luta Que ele briga por sua famía Onde isquece as lei fajuta E conhece as do dia-a-dia E resiste com sua garra Pra fica, memo na marra, Com ajuda de Deus e Virge Maria, Ou dum revórvi na bainha, Nas terra que ninguém dá valo Onde infrenta a pobreza e a fome E foge dos matadô Que recebe dinheiro dos rico Pra liquidá cum os invasô E eles lutam isolado Isperano só Deus do seu lado Purque cum fome e cum dor Só dá pra confia em Nosso Sinhô. E o governo que faz vista grossa Engorda as custa deles Depois viram as costa. E na eleição o político diz: - Meu filho, vou dar terra e alimento pra comer! Dispois de eleito grita empinando o nariz: - What cazzo pensar ser você?
Ó, Jesus Cristo, força que no peito vive Jesus, rogo-lhe com minha voz Meu Senhor, ao seu lado sempre estive Eu lhe peço, me escute uma vez mais Jesus Cristo, aqui estou eu! Aqui, bem aqui, me traga sua paz
Até quando, Senhor? Não sei dizer, não. Até que Deus se canse E pare meu coração. Ou que a bala me encontre No meio da escuridão Vou levando a vida Olhando pro céu Trabalhando o chão Esperando a chuva Pra que eu tenha meu pão Luto com a minha sina E a fé não se perde não
No quarto somente a cama Lençol mal arrumado Rosto mal traçado Um traço sombrio emana Da triste vida cansado Omite um brilho, uma chama Emite um riso abafado
Ilusões da mente insana Por dentro um grito que clama: - Olhe-me, ainda estou aqui! Mas tudo se torna lama De onde não pode sair Abismo grande Passado Querendo-o sucumbir
Nas trevas, meio rosto perfeito Meio corpo desfeito Meia alma estraçalhada Rajada de tiros? Não. Granada! Pessoas que voam Batalha Gargantas cortadas Navalha Matas em silêncio Sonhos internos Mortes em vício Vidas em inferno
O estouro ecoa Barulho Estrondo que lembra, perturba Limita o homem ao muro De estranhas formas pontudas Lembranças muito agudas Deixam o ser inseguro Guerreiro do Apocalipse! Submerso na imundice Confuso em sua crendice Escondido no escuro Jorrando o líquido impuro Do horrendo e grotesco furo A ferida aberta no peito A dor latente na mente Pesadelo sempre presente Vergonha do mal já feito
Um sentimento verdadeiro é Se enche o corpo, da cabeça aos pés Se junta um homem a uma mulher Se une os dois e traça um plano Dura segundos ou muitos anos Sem perder o brilho, luz ou cor E se seu nome continuar sendo Amor
Um momento especial Várias pessoas, um ideal Um riso, uma vibração Um afago, uma carícia Sem maldade, sem malícia Um beijo, um perdão Olhares brandos Falas carinhosas A correria mais sossegada A pressa mais vagarosa A hora quase parada
É instante de paz, reflexão A renovação solta no ar A esperança em forma de canção Corpos, mentes, almas, corações Jovem ou ancião; homem ou mulher Encontro de muitas gerações (Re)nascimento de cada ser Manoel Gonçalves
A menina cobre seu rosto De sujeira, de vergonha, de medo De incerteza no dia seguinte Aprende a se virar desde cedo Rotina sem nenhum requinte Nada que pareça errado Apenas um grave pecado O fato de ter nascido
A menina cobre seu sorriso Suas bonecas são trapos Pedaços de madeira e panos rotos Sua brincadeira é rir dos outros Um riso nervoso e amedrontado Que transpassa pelo vidro E assusta quem está do outro lado
A menina cobre sua boca Não sorri a boca banguela Não mostra sua graça E descalça, desnuda, Desequilibrada Troca um falso carinho Pela proteção agressiva De loucos e preguiçosos padrinhos
A menina cobre a si mesma E de repente repete a sina De tantas outras meninas Perdidas, pedintes, pedantes Encobrindo um corpo frágil De malícia e jeito fútil De pedidos no farol De farrapos maltrapilhos Maltratados, mal trajados O rosto esturricado do sol A sujeira lavada na chuva São lágrimas São lástimas São gotas de suor Que escorrem pelo rosto E levam no sal sujo A amargura e o mau gosto Da vida que lhes é impelida E a muito contragosto, engolida.
Ter um tempo para si Parar, sentar, sentir a brisa Olhar o horizonte Sentir o perfume das flores O calor do Sol matutino O beijo do mar na praia E a certeza que a natureza é sabia E que esse dia é especial E o melhor é saber que tudo isso Se renova a cada dia Manoel Gonçalves
Em cada texto escrito Uma palavra oculta Um sentimento implícito Uma saudade que machuca
Em cada verso lido Um furor abrandado Um ente lembrado Na mente o momento revisto
Em cada olhar Risos incontidos, afagos Braços conhecidos Contatos perdidos, vagos Ou cultivado diariamente Aos poucos desenvolvido
Cada gesto ofertado Calor, amor e carinho Lágrimas escorridas Gente muito querida Abraços apertados Simples, estabanados Vívidos, sinceros Renovados, fraternos
Oi, meu Senhor, me desculpe o atrevimento e a descompostura por não estar em Sua casa e vir falando como se fosse um chegado Seu, mas é que eu precisa ter uns dedinhos de prosa (como dizem os matutos) e não queria intermediário ou cerimônia. Olha, anda acontecendo uns negócios esquisitos aqui na terra que o Senhor criou e com o povo que foi colocado nela. Eu fico sem entender direito. Penso, penso e penso, mas não consigo chegar a conclusão alguma. Quem sabe o Senhor não dá uma luz... Tudo bem que dizem que há representantes Seus aqui e que eles podem explicar tais “mistérios da fé”, porém, eles andam falando cada coisa que a gente fica desconfiado de tudo, sem saber se ainda dá para acreditar neles. Vou tentar me explicar. Vira e mexe, por essas bandas de cá, o povo inventa umas catástrofes, mortes e mortes sem propósito, guerras e mais guerras em Seu nome e mais tantas ações descabidas, também usando a Sua imagem, na intenção de barrar os primeiros raivosos. Vez ou outra, um de Seus filhos inventa de ficar louco e sair baixando o porrete ou metendo bala em qualquer um que passa pela frente. Bom, mas como o Senhor tá em todo o canto, isso já é sabido, né mesmo? Mas o que está me tirando o humor é o que aconteceu com a pobre menina de 9 anos. Isso deixa a gente de cabelo em pé. Só o acontecido já é motivo para ficar pasmo e sem ter fé na bondade do ser humano (me desculpe a sinceridade). Pai e mãe foram escolhidos para cuidar dos filhos. Padrasto ou madrasta tem de assumir a responsabilidade que lhe é cabida. A criança, que não tem maldade e não consegue perceber o quão sacana pode ser um adulto, confia cegamente e se ampara nessas pessoas. Como é que alguém, dotado de todos os artifícios da inteligência, usa tudo isso para se aproveitar de uma pobre criança, com apenas seis anos e da irmã mais velha, com deficiência? Quem deveria protegê-la e dar amparo, no caso, foi justamente o monstro que acabou com sua pureza e a condenou a viver com essa lembrança pro resto da vida. E se não fosse a equipe médica que impediu essa gravidez maluca de ir adiante, ainda teria dois frutos dessa violência. Se é que conseguiria levar isso adiante, pois uma criança, sem estrutura formada adequadamente para ser mãe, sem condições psicológicas, sem tamanho e peso adequados, carregar mais da metade do seu peso na barriga (considerando que uma mulher engorda bastante na gestação), não sei se a menina aguentaria. Quando todos pensavam que a barbaridade tinha limite, aparece um de Seus servidores, com o dedo esticado e nariz empinado, condenando a ação médica e amaldiçoando-os. E ainda pior, dizendo que o padrasto cometeu um pecado menor! Que esses são os ensinamentos bíblicos e que a igreja defende a vida, os preceitos do Criador e de Seu Filho. O que é isso, meu Senhor? Não posso crer que seja essa entidade punidora dos seres que criou, que está ali, vigilante, esperando alguém escorregar, para terminar de dar-lhe a rasteira e apontar Seu poderoso dedo. Sempre aprendi que o Senhor é amor e bondade. Mesmo com doenças e outros males, não dá pra acreditar que seja tão contraditório. Claro que, como cristão, defendo a vida, mas qual vida teria essa criança (mesmo com apoio psicológico como falaram), qual vida repleta de ensinamentos ela teria para oferecer aos futuros nenês? A pessoa que se infla ao dizer que é Seu servidor não é pai, não é mãe, não tem filhos, não tem preocupações constantes com sua família, não é médico. Como pode ela julgar o que é melhor ou não para as outras pessoas? Como ele pode falar por Sua boca e dizer que essa é a Sua vontade? Será que ele esqueceu das barbaridades que a igreja já cometeu e dos escândalos (incluindo a prática de pedofilia) associados aos "colegas de fé"? Não é igualmente monstro aquele que se apoia em verdades inquestionáveis para punir alguém que vá contra essas ideias e, ao mesmo tempo, livra o culpado da monstruosidade? É dito que somos Sua imagem e semelhança, mas acho que a comparação está sendo invertida, pois estão inventando um Criador à imagem e semelhança do ser humano, com as mesmas limitações e com o mesmo dedo em riste. Assim, esse "criador-criado" pode vigiar e punir, dizer quem está certo ou errado, assim como emitir novas listas de pecados, isentar monstros como o fulano que fez essa maldade e condenar as pessoas que salvaram a vida da criança. Sendo pai e cidadão, peço todos os dias que nada aconteça às minhas crianças ou com os filhos de quem quer que seja, não porque me acho acima do bem e do mal, mas porque tento viver o amor pleno, aquele que acredito que venha verdadeiramente da Sua divindade e porque, caso aconteça, temo esquecer os preceitos de ser cristão. Não importa como O chamam e nem mesmo se dão algum nome ao Senhor, o que importa é que, de uma forma ou outra, sempre há fé nesse amor que pode mudar as pessoas e o mundo. Sei que me estendi, mas quem sabe o Senhor me ajuda a compreender esse absurdo. Sim, porque aceitar, não dá. Depois, os mesmos servidores perguntam por que a Sua casa esvazia a cada dia, por que as pessoas não assumem a religiosidade. Tenho algumas suspeitas sobre a(s) resposta(s), mas isso já é outra conversa. Obrigado, Um cristão.
A carta é fictícia, mas poderia não ser. A violência contra a menina é real, mas deveria não ser. Os dogmas seculares existem, manipulados e manipuladores também, mas a natureza humana é mutável e ninguém pode controlar a vontade e os sonhos das pessoas, mesmo que queira, mesmo que as aprisionem, ainda restarão os pensamentos e os labirintos da mente. Ali, ninguém pode invadir e se apossar.