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terça-feira, 17 de junho de 2008

Pintura

Quero um olhar diferente
Daquele que olha ao longe
E vê os pássaros voando
As folhas das árvores cantando
Balé de flores do campo
Sinfonia da água em cascata
Quero olhar para o céu
E ver a luz transpondo as nuvens
Sentar na relva úmida
Flutuar no vento vespertino
Observar o pôr-do-sol
E saber que depois dele
Nada mais é o que era
Já não há mais pássaros
Não se vê mais árvores
Muito menos montanhas
Rios ou cachoeiras
Flores e relva são meros rabiscos
Tudo perde seu significado
São simples silhuetas estranhas
Peças do mesmo cenário
Formas negras interessantes
Num fundo alaranjado
Elementos gráficos
De um belo quadro
Pelo grande Mestre pintado


Manoel Gonçalves

sábado, 14 de junho de 2008

Minhas Corredeiras

Sob minha janela
Correm águas cristalinas
E quem se banha nelas
Amor dos seus olhos mina

Sob minha cama
Correm águas musicais
E o som que delas emana
Acalma a dor dos meus ais

Sob meu corpo quente
Correm águas agitadas
Nutrem de vida a mente
Com suas idéias aladas

Em minha alma inquieta
As águas que tanto escrevi
Carregam sentimentos de poeta
Emoções diversas que vivi

Manoel Gonçalves

sexta-feira, 13 de junho de 2008

Sussurro

O sussurro na calada da noite chegou sorrateiramente aos seus ouvidos. Aquela voz, aqueles poemas, aquelas obscenidades… tudo conhecido e há muito não ouvido mais. Seria um delírio ou um sonho? Estaria ele escutando mesmo a rouquidão daquela voz suave e provocante a rondar sua nuca novamente. Ele nunca fora chegado a afetos demasiados banais para a sua criação e conduta de homem de negócios. Ah, mas com ela foi diferente desde o começo. O encontro na fila do cinema, os dois solitários (ela acabara de tomar um majestoso pé na bunda e ele sem expor suas emoções. Mas um esbarrão na saída da lanchonete e pipocas para todo lado foram o suficiente para marcar o início de um romance ardoroso, arrebatador e cheio de situações ousadas que ruborizavam as pessoas presentes, haja vista que o fato de ser local público ou privado nunca foi empecilho para ambos. Mas agora tudo era fumaça. Coisas que se desfiguram na névoa. A não ser quando a saudade derruba e o tédio arma o terreno para sentimentos de arrependimento e súplica. Nesses momentos, até um cheiro de ovo frito pode desencadear lembranças fortes. Ela era muito prendada na arte culinária e ele achava isso ótimo (o ovo era pedido especial dele para tomar o café da manhã). Mas sua paixão por gastronomia a aproximou de um chef francês que fazia algumas palestras no Brasil. O comunicado veio de forma simples, mas o corte que deixou foi profundo. Ele ainda não cicatrizou. E agora que a voz ecoava em seu ouvido, como um mantra do amor, ele revivia cada alegria e cada dor. Deu um salto e correu para o interruptor. Nada, nem sinal de qualquer vestígio dela. O jeito era se entregar às pilhas de papel dos relatórios e curtir a fossa ali mesmo ou socado num boteco qualquer. Quem sabe poderia pintar alguma coisa? Um esbarrão, coisas caídas, um jantar (desde que não fosse francês, é claro). O sussurro? Quem poderia ser? Ah, esquece, aquilo foi só um delírio de sua mente cansada, comprometida pelo álcool, e de sua paixão não correspondida. Os ecos eram de sua própria voz gritando para sua alma e vontade de viver esquecerem as mágoas e voltarem à vida.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Café da manhã

O raio de sol entrou pela fresta da janela, fazendo com que ele acordasse. Nesse instante, também invadiu o quarto um cheiro envolvente de café. Ana levantara cedo e estava na cozinha, cantarolando e preparando um café reforçado para o casal. Depois da noite que passaram seria indispensável repor as energias. Talvez extasiado com as lembranças dos bons momentos, talvez porque moravam no 8º andar daquele edifício reformado, nas imediações do centro da cidade, mas o fato é que o barulho infernal do trânsito paulistano parecia não existir. Marcelo aproveitou mais alguns instantes daquela paz, e depois de muito se espreguiçar, como gato depois da soneca quando sai da almofada, andou pelo quarto e conferiu a cara amassada, barba por fazer e cabelo arrepiado. Constatou a necessidade de um banho urgente. Pela brecha da porta cuidadosamente encostada, viu Ana distraída com sua missão gastronômica. Saiu do banho e ainda com a lerdeza matinal, sentou-se na cama, diante da janela. O sol tímido havia sumido. A nuvem cinzenta que parecia só mais um dos reflexos da poluição, na verdade, era prenúncio de chuva.

Abriu a janela e sentiu os pingos em sua face barbeada. Aquele ambiente bucólico o fez viajar no tempo, quando ainda era criança e morava com os pais na periferia da Zona Leste. O cheiro do café na casa toda, uma mulher cantarolando na cozinha, a preguiça em levantar para ir à escola, reforçada ainda pelas manhãs que eram surpreendidas pela chuva.

O bairro ainda continha muitas áreas verdes e as ruas, quase em sua totalidade, eram de terra. Ambiente mais que propício para as travessuras de um garoto peralta e cheio de vida. Marcelo não era do tipo que ficava o tempo todo na rua, pois os pais lhe davam liberdade, mas sempre cobravam postura e respeito às “leis” de casa. Hora de entrar era hora de entrar e fim de papo. Mas Marcelo aproveitou bem sua infância, correndo pelo bairro e pelos morros que ainda existiam na época, de onde soltou muitas pipas, jogou pára-quedas feitos de plástico e com soldadinhos e brincava de um inocente polícia e bandido.

Adorava quando chegava o fim de semana e podia acordar sem pressa, sentar na varanda de casa e simplesmente observar o movimento lento da rua. As nuvens se formavam e, antes que a chuva desabasse, ficava envolto em suas fantasias para determinar quais os bichos ou coisas que as nuvens formavam. Entrava e sentava à mesa da cozinha, observando sua mãe em meio à fumaça do café (uma cena digna de cinema ou de foto artística). Só acordava do transe com o chamado de sua mãe.

- Marcelo. Marcelo. Ei, acorda rapaz. – era Ana adentrando no quarto, com uma bandeja repleta de guloseimas. Estou chamando há algum tempo, mas você não foi. Então resolvi trazer o café na cama. Aproveita que não é todo dia, hein!

Marcelo voltou à realidade.

O bairro onde cresceu se modificou muito. Os morros deram lugar às casas, sobrados e prédios populares. As ruas de terra foram impermeabilizadas pelo asfalto e as áreas verdes revestidas pelo concreto. Mas as lembranças são e sempre serão as mesmas. Tão puras quanto a imagem de sua mãe rodeada pela fumaça do café, com a luz amarelada em seu rosto, imagem à qual ele imortalizou em uma pintura. Não tão cheia de detalhes, não tão rica, mas com toda a essência.

Manoel Gonçalves

sábado, 7 de junho de 2008

Despedida de um suposto inocente

Pela janela vejo a noite escura e sombria. Não há lua no céu, o que torna a noite mais enigmática. Uma sensação estranha permeia os meus sentimentos. Não sei exatamente o que me deixa assim, mas faço uma idéia. A noite silenciosa me convida às reflexões, às vezes banais, às vezes existenciais. Nessas últimas é onde me perco. Mas também é onde tenho a oportunidade de sair desse marasmo.


Não sei como vim parar aqui. Essa cela abarrotada de gente, fria e fedida. Um lugar onde a gente se esquece quem é e das coisas que mais gosta de fazer. Ontem, ao menos, foi diferente. Sai. Não fisicamente, é claro. Viajei por mundos distantes. Consegui vislumbrar além desse quadro de alvenaria. Voei acima das nuvens. Explorei os mares e seus segredos. Conquistei riquezas que jamais sonhava em possuir. Enfim, consegui sonhar. Era um paraíso. Mas a realidade crua me puxou de volta e cá estou, acuado, fragilizado e sem esperança.


Não lembro o que houve. Só sei que entrei num bar para espairecer. Andava meio desconfiado. Já havia algum tempo parecia não ser eu mesmo. Algo diabólico me rondava. Mas naquela noite o meu destino estava selado. Só me vem à memória que vi uma amiga, a qual platonicamente eu namorava, acompanhada por um cara. Meu mundo caiu. Tomei umas seis doses e tudo de apagou. Dizem que foi medonho, bárbaro. Mas eu não fiz nada. Só lembro-me de ter acordado na delegacia. E depois, aqui. Jurei inocência, mas ninguém acredita e riem da minha cara dizendo que aqui todos assim se definem.


Depois de tantas investigações, enfim, descobriram o verdadeiro assassino. E selaram sua condenação. Mas o pior foi saber que ele veio para o mesmo lugar que eu. Fiquei ao mesmo tempo furioso, por saber que ele é o culpado de eu estar aqui, e temeroso, pois sei que ele é cruel demais. Ele já soube que estou aqui e como não tem muito espaço nessa prisão, sei que em breve ele virá. Está furioso e disse que eu fui culpado por pegarem-no. E não gostou. Sua fúria está incontrolável. Jurou vingança. Disse que acabará comigo e que de hoje não passo. Tento lutar para me manter aqui, mas já não tenho mais forças. Acho que será essa noite. Ouço seus gritos aterradores. Não poderei enfrentá-lo. Sou fraco demais e não há espaço nesse corpo para nós dois. Então, só me resta contemplar a noite escura e me conformar. Sei que não vou sair daqui mesmo. Aqui não é lugar mesmo para pobres sonhadores. Eu seria devorado se permanecesse aqui. É melhor abrir espaço para a sua raiva e aceitar que ele suma com o que resta de mim. Sem esperança, é melhor deixar que tome o controle. Ele já é maior que eu mesmo e me engole aos poucos. Depois de ter “experimentado” o gosto do sangue, em vez de se arrepender, gostou. Serei a próxima vítima de sua falta de escrúpulos. Somente mais uma dentre as inúmeras que acho que fará. Pobres idiotas que aqui estão. Serão meros corpos com o passar dos dias. Ele os devorará. Minhas forças somem e as dele, criatura maligna, crescem. Só queria ter tido mais tempo e mais coragem para lutar. Faltam poucos momentos de lucidez. Os últimos. Depois, sei lá onde estarei. Serei apenas o reverso do espelho da outra face, a do mal. A que se mostrou mais forte e que está prestes a cometer mais um homicídio: o meu. Já não há mais tempo. Já não há mais nada.


...
...


Fujam o quanto quiserem, idiotas. Vermes rastejantes. Pobres animais de cativeiro, esperando apenas o momento da experiência, do abate. Não adianta fugir, não há lugar para se esconder. Eu sinto o cheiro. Do medo, do sangue fresco, sinto a batida trêmula da pulsação acelerada e descompassada. Pulsação com tempo determinado, com prazo de validade a vencer em breve. Nada nem ninguém tende a ficar vivo ao meu lado... Sabem o motivo dessa ameaça, quer dizer, desse aviso? Eu gosto de causar o pavor, de incitar o agito, a adrenalina. Isso faz ficar mais prazeroso! Isso me fascina! Desespero, medo, correria, dilacerações... sangue, ossos quebrados, olhos de súplica, estatelados de pavor, gritos histéricos, gemidos sufocados e... mais... muito mais SANGUE! Corram! A caçada só começou...

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Tempos idos


Era puro o dia
Quando a gente se via
E fosse mágoa ou alegria
Ninguém as escondia

Eram memoráveis esses dias...
As manhãs tinham magia
A barba não crescia
E a coluna não doía

O gesto que se fazia
Era de uma simpatia...
O povo passava e sorria
E todos diziam: Bom dia!

Serão sempre meus esses dias
Mas eu quis, com certa ironia,
Sem muita pompa, só nostalgia,
Desnudá-los nesta poesia


Manoel Gonçalves

De repente

De repente me deu uma saudade
Mas de algo que não vivi
De repente me deu um medo
Mas daquilo que eu desconheço
De repente me senti aliviado
Mas ainda não sei porquê
De repente sai por aí
Mas completamente sem destino
De repente eu me vi perdido
Mas eu nem sabia para onde ia
De repente encontrei você
E aí... Ah, aí tudo fez sentido
A saudade, o medo, o alívio
Sair por aí, ficar a ver navios
E olhar para o horizonte
Encontrar o sol nascendo em seu sorriso
O raiar do dia em seus olhos
E o recomeço a cada beijo seu
De repente eu me senti feliz
E vi que os repentes dessa vida
Por mais repentinos que possam parecer
Fazem sentido um dia, assim, de repente...


Manoel Gonçalves

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Comandante Mig

Mig saiu correndo para se esconder. Não poderia ser visto. Ainda estava sem o seu traje e seria facilmente identificado. Aproveitou uma distração daquela que parecia ser uma intrusa em seu espaço e passou rapidamente pelo corredor. Com receio que ela se virasse de repente, saiu em direção à escada e a subiu com se estivesse fugindo do perigoso Rork, o monstro aterrorizante de três cabeças, capaz de desferir golpes mortais e enxergar em toda parte, tornando quase impossível o oponente escapar de sua fúria. Ainda bem que não era ele, senão Mig não teria a mínima chance. Pequeno e magrelo, mas com uma sutil deficiência em seu organismo, que apesar da sutileza, o impedia de ser tão ágil. Seria a presa fácil. Somente seu traje o colocaria em vantagem e o tornaria tão habilidoso quanto seu pensamento pudesse sugerir. Para sua sorte, Kork estava no extremo norte do planeta. Aquela “intrusa” era alguém que ele não conhecia, e por isso mesmo podia perceber sua presença.


Chegou ao topo da escada quase sem fôlego, olhou pelo corredor obscuro e localizou a porta que queria. Entrou e demorou alguns nano-luz de tempo lá dentro. Quando a porta abriu, Mig saiu imponente em seu traje negro e cinza. Agora sim ele estava preparado para enfrentar os perigos do caminho até sua nave, onde estaria a salvo de qualquer inimigo, ativando o escudo de camuflagem. E o obstáculo estava ali mesmo, muito perto de impedir a concretização de sua missão. Mig ativou um botão em seu traje e desceu a escada sem pisar na escada, flutuando a 5 microfeet do chão. Deslizou pelo corredor até o salão central. Já podia ver seu transporte mais a leste. Mas o curioso é que ela não estava no salão. Estava fácil demais. Olhou para um lado, olhou para o outro. Nada, absolutamente nada! Onde ela teria ido? Será que o havia seguido? Não, seu treinamento com os dark angels o havia munido de instintos que detectariam a presença dela. Como não tinha tempo para esperar, começou a se encaminhar para sua nave. Mas a pressa não o deixou perceber um vulto escondido em uma entrada no final do corredor. Quando Mig passou, ela veio por trás dele. Seus instintos o fizeram pular e ele gelou. Não era possível, como tinha sido tão descuidado. Olhou de canto de olho para aquela criatura e saiu correndo. Ela tentava se comunicar, mas o dialeto era ininteligível. Ele tinha que conseguir, faltava pouco para chegar à sua nave e ficar seguro. Jogou-se no chão, saiu rolando e estava quase, quando ouviu um grito, algo quase assombroso que quase o paralisou, mas agora sabia que conseguiria, sua missão estava salva.


- Migueeeeelll, cuidado menino, vai se machucar!


Mas Carlota sabia que seu filho não a escutaria. Não naquela hora em que ele era o comandante Mig, pilotando sua nave, digo caixa de papelão, e explorando os locais mais longínquos das galáxias. Quando Carlota chegou com a TV 29”, Miguel ficou entusiasmado, não só pela TV novinha, mas principalmente pela caixa, pois foi só o seu pai tirar a TV que ele se jogou dentro da embalagem, vestiu-se com algumas coisas, improvisou um chapéu e começou sua viagem.

Manoel Gonçalves


* Esse miniconto foi feito inspirado no rosto traquina do Gábi, filho de nossa amiga Simone, a qual tem em seu MSN uma foto dele dentro de uma caixa de papelão. Miniconto que fiz e publiquei no blog do Desabafo de Mãe.

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Escreviver

Palavras surgem do nada
Rabiscadas numa folha
Estranhas, tortas
Apressadas
Estrofes não acabadas
No papel me expresso
Idéias, pensamentos
No texto impresso
Vontades, desejos
Sonhos, lamentos

Manoel Gonçalves

Quebra-queixo

Seu Luís é a prova de que o tempo, apesar de passar cada vez mais rápido (ao menos é essa a minha percepção), não é a mesma coisa para todos. Lembro da figura do seu Luís como se fosse uma marca do nosso bairro. Desde que recebi o alvará para poder ir à escola sozinho, lembro de vê-lo no horário da saída das aulas. Ali, parado, com ar pacato e meio bonachão. Sempre do mesmo jeito: sandálias de couro, calça de tergal, camisa meio rota e um aventalzinho. Espátula na mão e uma bandeja cheia da guloseima à sua frente, ele fazia a alegria da criançada. Não era para menos. Tomávamos um café mirrado antes de sair de casa e a aula acabava perto da hora do almoço. Parecia que o estômago ia varar pelas costas, que ia atacar a costela e ainda chupar o ossinho. Então, ao sair e dar de cara com o seu Luís, sempre que tínhamos dinheiro, era parada obrigatória. Aquele senhor, com olhos verdes e jeito de Dona Benta (personagem de Monteiro Lobato), bochechas rosadas e óculos arredondados, era querido pela garotada não era à toa, pois, mesmo quando não tínhamos dinheiro, acabava dando uma raspinha para os clientes mais fiéis. E assim, seguíamos nosso aminho na bagunça rotineira dos estudantes a caminho de casa.

Mesmo depois de sair daquela escola, sempre que avistava seu Luís, parava e comprava um pedacinho de seu doce. Mas aí comecei a trabalhar e passei a ficar menos tempo no bairro. Seu Luís perdeu seus “clientes” para uma bomboniere que abriu em frente à escola e vendia cada vez menos. Porém, como disse antes, ele não evoluiu com o tempo. Fazer quebra-queixo era mais que um simples negócio para ele. Era segredo de família. Aprendeu com seu pai, que aprendeu com a mãe dele, a arte de fazer o mais saboroso doce. Mesmo sem vender direito, ela fazia todos os dias uma bandeja cheia e saía às ruas. Quando não conseguia vender, passava em algum bairro carente e doava tudo aos garotos pobres. Até por isso mesmo, vez ou outra recebia algumas doações de amigos e ex-clientes.

Certa vez resolvi passear pelo bairro em que cresci e matar a saudade, ver se ainda conhecia alguém ou se lembrava dos lugares. E não é que vi seu Luís parado numa esquininha, já bem avançado nos anos, mas com o mesmo jeito de antes, porém, sem o mesmo brilho no olhar. Mas a fiel bandeja estava com ele e, ora quem diria, com o saudoso quebra-queixo. Não resisti. Tive de comprar e relembrar o gosto da infância. Aos poucos ele foi se lembrando de mim e ria como antes. Com um isto de pena e reverência por aquele bondoso homem, resolvi comprar seu doce todo. O que ia fazer eu nem tinha pensado. Certamente doaria em algum bairro carente, imitando o gesto do mestre. Ofereci-me para acompanhá-lo, mas acho que o orgulho de poder fazer as coisas conscientemente o impedia de aceitar ser levado como um velho gagá. Eu respeitei e me despedi.

Nunca soube onde era sua moradia, mas me contaram que era paupérrima. Talvez se a conhecêssemos não compraríamos seu quebra-queixo. Por achar que seria anti-higiênico, por preconceito, por tabu, sei lá. Porém, a grande magia estava no cheiro que dela exalava. Seu Luís era super cuidadoso com o processo e fazia ainda no estilo de sua avó.Dois meses depois daquele prazeroso encontro seu Luís faleceu. Mas o engraçado é que eu não consigo passar pelo meu antigo bairro sem achar que o vejo lá, no mesmo cantinho, em frente à escola, com sua bandeja cheia de doce e um rodeado de crianças querendo sempre mais ou pelo menos uma raspinha.

Manoel Gonçalves

* publicado também no blog Coeltânea Artesanal