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sábado, 16 de agosto de 2014

Cegueira

Narciso (1594-1596), por Caravaggio

Olhei
Juro que olhei
Olhei bem no fundo
Vazio fundo de seus olhos
Estáticos olhos de modelo
Brilho frio
Intenso e cortante
Do corte seco
Cauterizador
De um membro importante
Eu

Procurei
Juro que procurei
Procurei em sua pupila
E só vi um corpo à distância
Pálido, desbotado
Trêmulo, disperso
Enevoado pela catarata da retina
Uma quase cegueira
Limbo escuro
De um corpo em purgatório

Sofri
Juro que sofri
Sofri por saber-me desabrigado
Da morada de seus olhos
Dos raios cintilantes
Se sua íris
E por achar-me órfão
Abandonei de vez o lar
Se não podia estar
Na foto registrada em seu olhar
Não queria estar em mais nada
Nem em seus lábios
Nem em sua pele
Nem em seu sexo

Curei-me
Juro que curei-me
Curei-me de sua turva visão
Do seu foco impreciso
De querer achar-me
Nítido e em primeiro plano
Destaque total no seu enquadramento

Então vi que era tudo ilusão
A imagem não era real
Era só reflexo
Imagem dilatada
Numa pupila débil
Percebi que você
Não passava de um espelho d'água
Onde a mesma já se movimentara
E eu, pobre de mim,
Era apenas um Narciso
A fitar um artefato oco
Indignado por não ver mais
Minha imagem refletida
Mesmo que fosse distorcida
Monocromática

E, assim, seduzido
Pela ausência da imagem
Afoguei-me em mim mesmo

Eu vi
Juro que eu vi
Vi tudo que eu queria ver
De todos os ângulos
De seus convexos olhos

E no meu ponto cego
Uma dúvida
Latente
Quase certa
Crescente
Será que um dia eu a vi?

Manogon

2 comentários:

Enide Santos disse...

Poesia de encher os olhos!

Manoel Gonçalves (Manogon) disse...

Obrigado, Enide. Volte sempre. Abraços.