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segunda-feira, 9 de junho de 2008

Café da manhã

O raio de sol entrou pela fresta da janela, fazendo com que ele acordasse. Nesse instante, também invadiu o quarto um cheiro envolvente de café. Ana levantara cedo e estava na cozinha, cantarolando e preparando um café reforçado para o casal. Depois da noite que passaram seria indispensável repor as energias. Talvez extasiado com as lembranças dos bons momentos, talvez porque moravam no 8º andar daquele edifício reformado, nas imediações do centro da cidade, mas o fato é que o barulho infernal do trânsito paulistano parecia não existir. Marcelo aproveitou mais alguns instantes daquela paz, e depois de muito se espreguiçar, como gato depois da soneca quando sai da almofada, andou pelo quarto e conferiu a cara amassada, barba por fazer e cabelo arrepiado. Constatou a necessidade de um banho urgente. Pela brecha da porta cuidadosamente encostada, viu Ana distraída com sua missão gastronômica. Saiu do banho e ainda com a lerdeza matinal, sentou-se na cama, diante da janela. O sol tímido havia sumido. A nuvem cinzenta que parecia só mais um dos reflexos da poluição, na verdade, era prenúncio de chuva.

Abriu a janela e sentiu os pingos em sua face barbeada. Aquele ambiente bucólico o fez viajar no tempo, quando ainda era criança e morava com os pais na periferia da Zona Leste. O cheiro do café na casa toda, uma mulher cantarolando na cozinha, a preguiça em levantar para ir à escola, reforçada ainda pelas manhãs que eram surpreendidas pela chuva.

O bairro ainda continha muitas áreas verdes e as ruas, quase em sua totalidade, eram de terra. Ambiente mais que propício para as travessuras de um garoto peralta e cheio de vida. Marcelo não era do tipo que ficava o tempo todo na rua, pois os pais lhe davam liberdade, mas sempre cobravam postura e respeito às “leis” de casa. Hora de entrar era hora de entrar e fim de papo. Mas Marcelo aproveitou bem sua infância, correndo pelo bairro e pelos morros que ainda existiam na época, de onde soltou muitas pipas, jogou pára-quedas feitos de plástico e com soldadinhos e brincava de um inocente polícia e bandido.

Adorava quando chegava o fim de semana e podia acordar sem pressa, sentar na varanda de casa e simplesmente observar o movimento lento da rua. As nuvens se formavam e, antes que a chuva desabasse, ficava envolto em suas fantasias para determinar quais os bichos ou coisas que as nuvens formavam. Entrava e sentava à mesa da cozinha, observando sua mãe em meio à fumaça do café (uma cena digna de cinema ou de foto artística). Só acordava do transe com o chamado de sua mãe.

- Marcelo. Marcelo. Ei, acorda rapaz. – era Ana adentrando no quarto, com uma bandeja repleta de guloseimas. Estou chamando há algum tempo, mas você não foi. Então resolvi trazer o café na cama. Aproveita que não é todo dia, hein!

Marcelo voltou à realidade.

O bairro onde cresceu se modificou muito. Os morros deram lugar às casas, sobrados e prédios populares. As ruas de terra foram impermeabilizadas pelo asfalto e as áreas verdes revestidas pelo concreto. Mas as lembranças são e sempre serão as mesmas. Tão puras quanto a imagem de sua mãe rodeada pela fumaça do café, com a luz amarelada em seu rosto, imagem à qual ele imortalizou em uma pintura. Não tão cheia de detalhes, não tão rica, mas com toda a essência.

Manoel Gonçalves

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