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quarta-feira, 4 de junho de 2008

Quebra-queixo

Seu Luís é a prova de que o tempo, apesar de passar cada vez mais rápido (ao menos é essa a minha percepção), não é a mesma coisa para todos. Lembro da figura do seu Luís como se fosse uma marca do nosso bairro. Desde que recebi o alvará para poder ir à escola sozinho, lembro de vê-lo no horário da saída das aulas. Ali, parado, com ar pacato e meio bonachão. Sempre do mesmo jeito: sandálias de couro, calça de tergal, camisa meio rota e um aventalzinho. Espátula na mão e uma bandeja cheia da guloseima à sua frente, ele fazia a alegria da criançada. Não era para menos. Tomávamos um café mirrado antes de sair de casa e a aula acabava perto da hora do almoço. Parecia que o estômago ia varar pelas costas, que ia atacar a costela e ainda chupar o ossinho. Então, ao sair e dar de cara com o seu Luís, sempre que tínhamos dinheiro, era parada obrigatória. Aquele senhor, com olhos verdes e jeito de Dona Benta (personagem de Monteiro Lobato), bochechas rosadas e óculos arredondados, era querido pela garotada não era à toa, pois, mesmo quando não tínhamos dinheiro, acabava dando uma raspinha para os clientes mais fiéis. E assim, seguíamos nosso aminho na bagunça rotineira dos estudantes a caminho de casa.

Mesmo depois de sair daquela escola, sempre que avistava seu Luís, parava e comprava um pedacinho de seu doce. Mas aí comecei a trabalhar e passei a ficar menos tempo no bairro. Seu Luís perdeu seus “clientes” para uma bomboniere que abriu em frente à escola e vendia cada vez menos. Porém, como disse antes, ele não evoluiu com o tempo. Fazer quebra-queixo era mais que um simples negócio para ele. Era segredo de família. Aprendeu com seu pai, que aprendeu com a mãe dele, a arte de fazer o mais saboroso doce. Mesmo sem vender direito, ela fazia todos os dias uma bandeja cheia e saía às ruas. Quando não conseguia vender, passava em algum bairro carente e doava tudo aos garotos pobres. Até por isso mesmo, vez ou outra recebia algumas doações de amigos e ex-clientes.

Certa vez resolvi passear pelo bairro em que cresci e matar a saudade, ver se ainda conhecia alguém ou se lembrava dos lugares. E não é que vi seu Luís parado numa esquininha, já bem avançado nos anos, mas com o mesmo jeito de antes, porém, sem o mesmo brilho no olhar. Mas a fiel bandeja estava com ele e, ora quem diria, com o saudoso quebra-queixo. Não resisti. Tive de comprar e relembrar o gosto da infância. Aos poucos ele foi se lembrando de mim e ria como antes. Com um isto de pena e reverência por aquele bondoso homem, resolvi comprar seu doce todo. O que ia fazer eu nem tinha pensado. Certamente doaria em algum bairro carente, imitando o gesto do mestre. Ofereci-me para acompanhá-lo, mas acho que o orgulho de poder fazer as coisas conscientemente o impedia de aceitar ser levado como um velho gagá. Eu respeitei e me despedi.

Nunca soube onde era sua moradia, mas me contaram que era paupérrima. Talvez se a conhecêssemos não compraríamos seu quebra-queixo. Por achar que seria anti-higiênico, por preconceito, por tabu, sei lá. Porém, a grande magia estava no cheiro que dela exalava. Seu Luís era super cuidadoso com o processo e fazia ainda no estilo de sua avó.Dois meses depois daquele prazeroso encontro seu Luís faleceu. Mas o engraçado é que eu não consigo passar pelo meu antigo bairro sem achar que o vejo lá, no mesmo cantinho, em frente à escola, com sua bandeja cheia de doce e um rodeado de crianças querendo sempre mais ou pelo menos uma raspinha.

Manoel Gonçalves

* publicado também no blog Coeltânea Artesanal

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