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terça-feira, 24 de março de 2009

Relações inglórias

A noite estava fria. Era quase meia-noite. A casa agora estava em silêncio quase absoluto, não fosse pelo ronco que vinha da sala e por um borbulhar de água fervendo no fogão. Os ponteiros do relógio de parede na cozinha, daqueles simples de promoção de loja de móveis, pareciam pesados. Lentos e pesados. O tempo naquele momento passava com extremo vagar. Cômodos mal-iluminados e gélidos. Talvez representando o clima lúgubre daquela noite, talvez para encobrir os suspiros trêmulos, ofegantes, que se esgueiravam pelas narinas constipadas daquele rosto choroso e penitente. Na penumbra do banheiro, somente uma fresta de luz oriunda do refletor no poste se derramava pela janela, a face aterrorizada se contemplava diante do espelho, buscando uma razão, quer fosse para a cena a que a sua detentora foi submetida, quer fosse para a própria existência. E assim, quem sabe, objetivando o próprio renascimento, ressurgir daquela escuridão para uma vida mais digna ou então, sem forças, sucumbir aos apelos de seus temores.

Nem sempre foi assim. A boca, hoje triste, sem brilho nem batom, já se abriu em largos sorrisos e em exuberante carmim. O rosto, marcado de rugas de descontentamento, já foi macio e bem tratado, até mesmo pela mão que o desprezou tempos depois. Os cabelos despenteados já foram cuidadosamente escovados e moldados em penteados, para que ficassem de prontidão, aguardando o momento em que se libertariam e seriam amassados contra o travesseiro. O corpo que tremia no escuro, pela raiva e pelo frio, já se sentiu tão quente ao ser tocado que parecia um vulcão em erupção, pronto a cobrir de lava todo o ambiente e fazer arder a chama da paixão até que os dois corpos ficassem unidos, solidificados no êxtase do amor. Mas tudo tinha ficado num passado distante. Sentimentos soterrados por camadas de sedimentos dos percalços vividos durante anos, formando a espessa camada que camufla a verdadeira mulher por debaixo daquela casca: pessoa agradável e bem quista, juvenil e sonhadora, amante carinhosa e mãe amorosa; uma imagem reservada aos momentos solitários, quando Gilda fazia um esforço para mantê-la viva na memória.

Gilda e Adamastor se conheceram numa quermesse. Ele, 8 anos mais velho e já trabalhando numa grande empresa, não conseguiu disfarçar ao vê-la na barraca de bolos, agitando o corpo e chamando os presentes para degustar as guloseimas da barraca. Aquela noite sempre serviu para boas gargalhadas com a recordação de quantos pedaços de bolo Adamastor teve que comer até convencê-la a falar seu nome e dar o número do telefone. Gilda, que estava terminando o colegial, trabalhava como atendente de uma lanchonete no centro da cidade. Ela não queria se meter com homem mais velho, mas acabou dizendo sim três anos depois ao casamento. Se perguntarem, nem ela pode dizer como tudo aconteceu tão relativamente rápido.

As primeiras brigas começaram quando ela entrou na faculdade. Adamastor morria de ciúmes dos amigos dela e vivia bisbilhotando suas coisas à procura de algum recadinho, um nome, uma prova incontestável. Assim mesmo, Gilda conseguiu driblar a rabugice do marido e terminar o curso. Claro que o filho ajudou muito a mudar a cabeça dele. Ela achava que uma criança, mesmo sem ter terminado a faculdade, iria ajudar a melhorar o entendimento entre eles e trazer os tempos de carinho de volta.

Isso aconteceu de fato, pelo menos nos dois anos e meio seguintes. Mas a idéia de que sua esposa queria trabalhar, sair, conhecer gente diferente, trilhar uma carreira, colocava Adamastor em paranóia constante. As brigas recomeçaram. Ele começou a chegar mais tarde e conversar menos com ela. Gilda tinha de dar conta do seu emprego, não ficar até tarde por causa do filho e chegar disposta em casa, para a segunda jornada. Ele chegava resmungando, fazendo gracinhas e insinuando se alguém tinha dado em cima dela, discutia, jantava, ficava assistindo alguma coisa e ia pra cama sempre depois dela. Aí a coisa mudava de figura. Jurava amor eterno, pedia desculpas, dizia que ia mudar, envolvia-a, os dois choramingavam, faziam sexo e dormiam. Mas a história sempre se repetia.

A situação piorou de vez quando ela foi promovida. O que ele achava que seria passageiro, agora começava a ficar sério demais. Para seu desespero, a empresa desativou sua unidade de trabalho. Ele estava tão seguro de sua situação que não procurou atualização na área e tornou-se dispensável. O desemprego bateu-lhe às fuças. As discussões tornaram-se constantes com a crise financeira. Foram os piores meses na vida de Gilda, pois não raramente ele chegava bêbado em casa, gritava, derrubava algumas coisas e depois desabava na cama. Ela morria de medo, mas tinha convicção de que ele não a agrediria. Além do mais, tinha esperança que tudo mudaria assim que ele se firmasse em outra empresa. Era só uma fase e, apesar de tudo, ainda o amava e ele era um pai presente, às vezes ríspido demais, mas não desleixado, quando estava bom.

O problema é que o ócio torna a pessoa sem opções e a saída nem sempre é mais edificadora. Alguns quando caem, levantam-se rapidamente, outros preferem culpar qualquer um pela sua queda e se apóiam numa vareta para se reerguer, não percebendo a inevitável queda para o novo abismo. Adamastor se refugiou na bebida. Quando estava mal, chorava, mudava de humor rapidamente e se dizia um inútil sustentado pela mulher. Morria de vergonha e raiva por isso. E Gilda também já estava sem paciência para aguentar aquela autopiedade exacerbada.

Na sexta-feira daquela semana, pensando em se divertir um pouco, aceitou o convite das amigas do serviço para um happy hour. Mandou o filho para a casa da mãe dela, pois não confiava que seu marido fosse chegar cedo em casa. A noite foi muito boa e ela pode desabafar um pouco, espairecer. Aceitou a carona da Mirtes, que estava com seu namorado, para chegar o quanto antes em casa, a tempo ainda de buscar seu filho. Mas quando o carro parou diante de sua casa, Adamastor só olhou pela janela e a viu sair do carro de outro homem, dar um lindo sorriso e jogar um beijo. Aquilo despertou sua fúria. Ficou sentado no sofá, esperando ela entrar. Gilda nem teve tempo de acender a luz. Foi puxada com força e jogada no chão. Ele a chamou de tudo em quanto, acusou-a de traição. Ela tentava se defender e explicar que não era aquilo, que ele estava enganado. Mas ele nem ouvia. Contrariando tudo que ela imaginava, agarrou-a com força, disse que ia dar o que ela merecia. Rasgou sua roupa e a forçou contra o piso. Ela chorava de raiva e dor, tentou sair, mas ele a pressionou. Entrava e saía de seu corpo com voracidade animal. Após finalizar sua possessão brutal, jogou-a contra a parede e a mandou para a cozinha preparar sua janta. Jogou-se no sofá, ligou a TV e agarrou sua companheira destilada.

Sem forças, machucada por dentro e por fora, com medo, dando graças por ele não ter usado de violência e a espancado, mas ferida em sua honra violada como uma besta irracional, Gilda acabou indo para a cozinha, sem saber ao certo o que faria. Colocou a água no fogo e ficou picotando a cebola. O ódio percorria seu corpo, principalmente quando lembrava do acontecido. Adamastor ficou sentado como se nada tivesse feito. Pegou no sono. Ela pensou várias vezes em fazer uma besteira, contra ele ou contra ela mesma, pois se sentia suja. Foi ao banheiro para se lavar, livrar-se daquela sujeira física e moral, purificar o corpo e a alma, arrancar as manchas e a lembrança, mas não queria se olhar, não queria constatar o horror.

A água borbulhava na cozinha, o rosto queimava no banheiro, o sangue subia e só a raiva pulsava em suas veias. Aquele homem galanteador da quermesse perdeu-se na escuridão de si mesmo. Naquela maldita noite perdia-se também para ela. Acabou o amor, findou-se o respeito, morreram as esperanças. Só ficou o ódio. Queria denunciá-lo, mas sentia medo, vergonha, não queria se expor e sofrer outra violação. Pensava no pior e pensava em seu filho. Voltou para a cozinha e ao passar pela sala, a imagem do mostro adormecido fez tudo voltar à sua mente. Dirigiu-se ao fogão, apagou o fogo, fitou o vazio por alguns segundos. Pegou a panela, foi até a sala e parou diante daquela massa tosca. Ficou enojada. Suas mãos tremiam muito. Em sua mente as cenas de todos os anos passavam depressa. Eram reconfortadas pela imagem de seu filho. Ainda bem que estava com a avó. Está em boas mãos e não preciso me preocupar agora, pensou ela. Tinha de tomar uma decisão. A que mudaria sua vida dali pra frente. Segurou firme a panela, afastou-se um pouco, respiração ofegante, e jogou a água escaldante...

A planta, que ficava num lindo vaso ao lado do sofá, ao receber aquele banho de água quente, murchou na hora, assim como murchara a flor da paixão vivida. Dela restou apenas a beleza do fruto, um menino sorridente que precisava ser cuidado para não apodrecer também.

Gilda, trinta e poucos anos, um filho, agora descasada, ainda que não oficialmente, sentiu um misto de angústia e alívio. Adamastor, por tudo o que fez, merecia seu ódio e muito mais, mas ela não merecia apodrecer na cadeia, longe de seu filho, deixando que outra pessoa o criasse. Sua sede de justiça inflava seu ser, mas não podia abdicar de sua vida e de seus sonhos, não devia se igualar aos seres irracionais. Olhou tudo a sua volta, juntou o que achava mais importante e indispensável. Os lençóis desfeitos, frios e desbotados, assemelhavam-se ao seu orgulho e seu amor. A sala revirada e a besta-fera jogada sobre o sofá incitavam-na à fuga. Apenas com a imagem de seu filho na cabeça, bateu a porta e saiu. Respirou fundo, jogou o cabelo sobre o rosto, escondeu os olhos sob os óculos escuros, tentou sair de cabeça erguida, apesar dos direitos em ser humana violados, e foi para a casa de sua mãe, sabendo que tinha muito a fazer, mas sem o peso que vinha arrastando. Algum tempo depois, Adamastor, após implorar inúmeras vezes pelo perdão de Gilda e sem conseguir sequer falar com ela, assinava os papéis do processo que ela estava movendo contra ele. Incentivada por sua mãe, procurou a delegacia da mulher e pode enfim ter sua vingança iniciada e a justiça cumprindo seu devido papel.

Manoel Gonçalves

4 comentários:

Anônimo disse...

O tom feminino numa forma diferenciada. Seus textos sempre me levam a uma forma incomum de realidade. Mas seria mesmo justiça? Não sei...

Manoel Gonçalves (Manogon) disse...

E seus comentários sempre me levam a exercitar a mente, pontuais, sinceros e ao mesmo tempo, enigmáticos. hehehehe. Também não sei se é justiça ou não. Quem sou eu para apontar? Da mesma forma que acho que ela poderia perder a cabeça e massacrar o safado, também acho que ela poderia se arrepender se o fizesse e perderia em dobro, sem a própria vida e sem o filho. Então, fica aí a eterna dúvida. Minha personagem não aponta o certo e sim escolhe uma das opções. Paradoxos da vida, aos quais todos estão sujeitos. Obrigado, Lunna, pela visita e pelo comentário.

Anônimo disse...

Eu realmente adorei o texto. Muito dinâmico e prende de verdade a atenção do leitor.
Meus parábens pelo brilhante texto e captação da alma feminina... rsrsrs... Quanto á justiça, cada um enxerga da forma como quer. Para uns será e para outros não será... A cabeça comanda as ações assim como o coração comanda os sentimentos... raiva? Amor? Dor? Todos nós já os sentimos ao menos uma vez na vida. Cabe a nós deixarmos que a consciência julgue nossos próprios atos.
Obrigada Manoel.
Att.

Jacqueline.

Manoel Gonçalves (Manogon) disse...

Oi, Jacqueline, eu que agradeço pela visita e pelo belo comentário. Muito obrigado. Espero que volte a essa humilde página e que ela sempre lhe conceda momentos de prazer por meio da leitura.
Abraços.