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quarta-feira, 11 de março de 2009

Carta de um cristão: pequena conversa com o Criador

Oi, meu Senhor, me desculpe o atrevimento e a descompostura por não estar em Sua casa e vir falando como se fosse um chegado Seu, mas é que eu precisa ter uns dedinhos de prosa (como dizem os matutos) e não queria intermediário ou cerimônia.
Olha, anda acontecendo uns negócios esquisitos aqui na terra que o Senhor criou e com o povo que foi colocado nela. Eu fico sem entender direito. Penso, penso e penso, mas não consigo chegar a conclusão alguma. Quem sabe o Senhor não dá uma luz... Tudo bem que dizem que há representantes Seus aqui e que eles podem explicar tais “mistérios da fé”, porém, eles andam falando cada coisa que a gente fica desconfiado de tudo, sem saber se ainda dá para acreditar neles.
Vou tentar me explicar. Vira e mexe, por essas bandas de cá, o povo inventa umas catástrofes, mortes e mortes sem propósito, guerras e mais guerras em Seu nome e mais tantas ações descabidas, também usando a Sua imagem, na intenção de barrar os primeiros raivosos. Vez ou outra, um de Seus filhos inventa de ficar louco e sair baixando o porrete ou metendo bala em qualquer um que passa pela frente. Bom, mas como o Senhor tá em todo o canto, isso já é sabido, né mesmo? Mas o que está me tirando o humor é o que aconteceu com a pobre menina de 9 anos. Isso deixa a gente de cabelo em pé. Só o acontecido já é motivo para ficar pasmo e sem ter fé na bondade do ser humano (me desculpe a sinceridade).
Pai e mãe foram escolhidos para cuidar dos filhos. Padrasto ou madrasta tem de assumir a responsabilidade que lhe é cabida. A criança, que não tem maldade e não consegue perceber o quão sacana pode ser um adulto, confia cegamente e se ampara nessas pessoas. Como é que alguém, dotado de todos os artifícios da inteligência, usa tudo isso para se aproveitar de uma pobre criança, com apenas seis anos e da irmã mais velha, com deficiência? Quem deveria protegê-la e dar amparo, no caso, foi justamente o monstro que acabou com sua pureza e a condenou a viver com essa lembrança pro resto da vida. E se não fosse a equipe médica que impediu essa gravidez maluca de ir adiante, ainda teria dois frutos dessa violência. Se é que conseguiria levar isso adiante, pois uma criança, sem estrutura formada adequadamente para ser mãe, sem condições psicológicas, sem tamanho e peso adequados, carregar mais da metade do seu peso na barriga (considerando que uma mulher engorda bastante na gestação), não sei se a menina aguentaria.
Quando todos pensavam que a barbaridade tinha limite, aparece um de Seus servidores, com o dedo esticado e nariz empinado, condenando a ação médica e amaldiçoando-os. E ainda pior, dizendo que o padrasto cometeu um pecado menor! Que esses são os ensinamentos bíblicos e que a igreja defende a vida, os preceitos do Criador e de Seu Filho. O que é isso, meu Senhor? Não posso crer que seja essa entidade punidora dos seres que criou, que está ali, vigilante, esperando alguém escorregar, para terminar de dar-lhe a rasteira e apontar Seu poderoso dedo. Sempre aprendi que o Senhor é amor e bondade. Mesmo com doenças e outros males, não dá pra acreditar que seja tão contraditório.

Claro que, como cristão, defendo a vida, mas qual vida teria essa criança (mesmo com apoio psicológico como falaram), qual vida repleta de ensinamentos ela teria para oferecer aos futuros nenês?
A pessoa que se infla ao dizer que é Seu servidor não é pai, não é mãe, não tem filhos, não tem preocupações constantes com sua família, não é médico. Como pode ela julgar o que é melhor ou não para as outras pessoas? Como ele pode falar por Sua boca e dizer que essa é a Sua vontade? Será que ele esqueceu das barbaridades que a igreja já cometeu e dos escândalos (incluindo a prática de pedofilia) associados aos "colegas de fé"? Não é igualmente monstro aquele que se apoia em verdades inquestionáveis para punir alguém que vá contra essas ideias e, ao mesmo tempo, livra o culpado da monstruosidade? É dito que somos Sua imagem e semelhança, mas acho que a comparação está sendo invertida, pois estão inventando um Criador à imagem e semelhança do ser humano, com as mesmas limitações e com o mesmo dedo em riste. Assim, esse "criador-criado" pode vigiar e punir, dizer quem está certo ou errado, assim como emitir novas listas de pecados, isentar monstros como o fulano que fez essa maldade e condenar as pessoas que salvaram a vida da criança.
Sendo pai e cidadão, peço todos os dias que nada aconteça às minhas crianças ou com os filhos de quem quer que seja, não porque me acho acima do bem e do mal, mas porque tento viver o amor pleno, aquele que acredito que venha verdadeiramente da Sua divindade e porque, caso aconteça, temo esquecer os preceitos de ser cristão. Não importa como O chamam e nem mesmo se dão algum nome ao Senhor, o que importa é que, de uma forma ou outra, sempre há fé nesse amor que pode mudar as pessoas e o mundo.
Sei que me estendi, mas quem sabe o Senhor me ajuda a compreender esse absurdo. Sim, porque aceitar, não dá. Depois, os mesmos servidores perguntam por que a Sua casa esvazia a cada dia, por que as pessoas não assumem a religiosidade. Tenho algumas suspeitas sobre a(s) resposta(s), mas isso já é outra conversa.


Obrigado,
Um cristão.

A carta é fictícia, mas poderia não ser. A violência contra a menina é real, mas deveria não ser. Os dogmas seculares existem, manipulados e manipuladores também, mas a natureza humana é mutável e ninguém pode controlar a vontade e os sonhos das pessoas, mesmo que queira, mesmo que as aprisionem, ainda restarão os pensamentos e os labirintos da mente. Ali, ninguém pode invadir e se apossar.

Manoel Gonçalves

3 comentários:

Sueli disse...

Tb fiquei chocada quando li a notícia e, mais ainda, com o fato envolvendo a igreja católica. Me fez até repensar na minha opção por seguir a religião católica e escolher a mesma para meus filhos... Pra falar a verdade, ainda tô pensando... eu acredito em Deus, isso nunca vai mudar, mas há outras formas de manifestar a minha fé... beijos, um texto muito bom, como todos os que já escreveu! Sueli

Anônimo disse...

Obrigado, Sueli, pelo comentário. Realmente os valores estão deturpados e da-se mais importância ao status que as instituições representam e a relação de poder exercida que à condição humana e até mesmo ao enriquecimento espiritual por meio da religiosidade, seja ela qual for, até mesmo se for a descrença em Deus, mas o reconhecimento em uma força superior capaz de produzir seus "milagres". Os que se acham donos de uma instituição ou outra, por se dizerem representantes do Criador na terra, por vezes se mostram de uma pequenz infinita que seria difícil reconhecer um gesto de amor e salvaçãoda vida alheia.
Abraços.

Anônimo disse...

Estupra... mas não mata!
Pensei que não ouviria essa frase de novo.
Maluf fez escola... ou veio dela, não sei.